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corpo estranho     [strange body]

2020
Pintura revestida com camadas de tule e filó, textos recortados
sobre folha de acetato e fotografia impressa sobre papel Hahnemuhle.
[Painting covered with tulle layers, texts cut out on
acetate sheet and photograph printed on Hahnemuhle paper.]
400 x 1040 cm

Embora as memórias de sua vida e as muitas histórias de sua família povoem o imaginário de Ismael Monticelli, até 2020 sua obra se esmerava em evitar, talvez por um projeto ético, a menção a aspectos biográficos. Como crítico do projeto narcísico da branquitude que tem na arte sua faceta mais bem-acabada, o artista programaticamente se esquivara da sedução de falar de si ou dos seus. No entanto, às vésperas do ocaso da pandemia da Covid-19, uma história quis emergir de sua condição de segredo. Não escolheu, obviamente, apresentar-se na chave da translucidez, uma noção da qual o artista sempre esteve incrédulo, cônscio da dimensão ficcional daquilo que se esmera por performar transparências e nitidez de ordens diversas.

Assim, foi desde a opacidade de um segredo sofrido em família que surgiu Corpo estranho, uma instalação que narra os abusos da polícia contra o avô do artista durante a Ditadura Militar. Torturado em meio à mata onde a polícia, sem provas, suspeitava que ele tivesse assassinado seu próprio primo, o avô de Ismael foi mais uma das silenciadas e invisibilizadas vítimas da violência do Estado. Visando conseguir uma confissão para um crime nunca cometido, a polícia surrou e simulou afogamentos no corpo já traumatizado do avô do artista, deixando-o, após meses de tortura, surdo e cego. A memória desse trauma foi transmitida a Ismael por meio de seu pai, cuja narrativa foi novamente fabulada pelo artista em Corpo estranho.

Na extensa instalação, textos recortados sobre folhas de acetato, fotografias do avô e pinturas revestidas com camadas de tule e filó se articulam narrativamente sob a penumbra das memórias obscurecidas pela dor e pelo tempo. Colecionadas por Ismael ao longo de anos, as pinturas de autores desconhecidos foram arranjadas como uma espécie de panorama de uma paisagem genérica, uma floresta inespecífica cuja força reside não na singularidade, mas na ideia de dispersão e coletividade. Veladas por tules – numa filiação tanto às veladuras pictóricas quanto às liturgias do luto – como uma paisagem qualquer, a opacidade de Corpo estranho acolhe mais essa história de dor.

Although memories of his life and many stories from his family populate the imagination of Ismael Monticelli, until 2020 his work diligently avoided, perhaps as an ethical project, mentioning biographical aspects. As a critic of the narcissistic project of whiteness, which has its most refined facet in art, the artist programmatically shunned the temptation to speak of himself or his own. However, on the eve of the Covid-19 pandemic’s decline, a story wanted to emerge from its condition of secrecy. It did not choose, obviously, to present itself in the key of translucency, a notion the artist has always been skeptical of, conscious of the fictional dimension of that which strives to perform various orders of transparency and clarity.

Thus, from the opacity of a family secret emerged Strange Body, an installation narrating the police abuses against the artist's grandfather during the Military Dictatorship. Tortured in the forest where the police, without evidence, suspected he had murdered his own cousin, Ismael’s grandfather was another silenced and invisible victim of state violence. Seeking a confession for a crime never committed, the police beat and simulated drownings on the already traumatized body of the artist's grandfather, leaving him, after months of torture, deaf and blind. This traumatic memory was passed on to Ismael by his father, whose narrative was once again fabulized by the artist in Strange Body.

In the extensive installation, texts cut out on acetate sheets, photographs of the grandfather, and paintings covered with layers of tulle and netting are narratively articulated under the twilight of memories obscured by pain and time. Collected by Ismael over the years, the paintings by unknown authors were arranged as a sort of panorama of a generic landscape, an unspecified forest whose strength lies not in its singularity but in the idea of dispersion and collectivity. Veiled by tulles – relating both to pictorial glazes and the liturgies of mourning – like any landscape, the opacity of Strange Body embraces yet another story of pain.

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